• Cinema
  • 8, 15, 22 e 29 Agosto 2012

    Cinema no Terraço – Agosto 2012

    Fotografia Sara Rafael
    ..

    A música popular está cheia de histórias, mas poucas têm o encanto mítico do punk e do rock underground americanos, com os seus sonhos, as suas aporias e desilusões. É de estranhar, por isso, a indiferença da ficção (no cinema e na literatura). Lembram-se de bons livros que tenham explorado as vidas quixotescas das personagens? De filmes que tenham contribuído para o enriquecimento do imaginário em causa? Nem pelos dedos se contam.

    Tem cabido ao cinema documental desempenhar esse papel com os defeitos e as qualidades que se reconhecem. Sem a sedução do romanesco e a imprevisibilidade da ficção, mas com a vontade de captar o real e documentar narrativas, com os seus acontecimentos e figuras. Neste ciclo, contam-se quatro obras que fazem exactamente isso a partir de diferentes sensibilidades, não tivessem sido realizadas em tempos distintos e não obedecessem a modos particulares de filmar a música.

    “The Decline of the Western Civilization” de Penelope Spheeris (1980, 100 minutos)

    .

    The Decline of Western Civilization (1981), de Penelope Spheeris é uma obra de culto que retrata a cena punk da Los Angeles dos anos 80. Para muitos em Portugal, nessa década e na seguinte, foi a primeira materialização de um conjunto de imagens e sons. Com penteados estrambólicos, esgares ameaçadores (Escape From New York, de John Carpenter estreara no mesmo ano), corpos que se agrediam ou agrediam outros corpos. E música ao vivo: o rock clássico dos X transtornado pela ferocidade do punk, a performance caótica dos Germs e dos Black Flag (ainda sem Rollins) ou a delinquência juvenil e musical dos Fear e dos Circle Jerks.

    Visto hoje, é um filme que tenta fixar um olhar “antropológico” sobre os rituais e os códigos de uma subcultura que o mainstream considera(va) perigosa ou simplesmente não conhecia. Spheeris nunca se confunde com aquilo que filma, nem tão pouco critica ou defende as opiniões dos entrevistados ou a música que fazem. Limita-se a salientar aspectos ou histórias que alguma imprensa já tinha aflorado: a violência dos concertos, a velocidade e o alto volume das canções, a vida precária dos músicos (alguns habitam edifícios devolutos).

    É quando perde o controlo do seu olhar (de uma condescendência autoritária), que The Decline of Western Civilization se torna comovente e historicamente importante. Comovente porque apanha os músicos na sua juventude, ou seja na sua inocência e abandono (a caminho dos trinta, Greg Ginn é o único que permanece reservado). E historicamente importante, porque documenta o fim da boémia punk de Hollywood (de que a revista Slash, os X, Claude Bessy e Alice Bag Band eram protagonistas) e a ascensão bruta e politicamente incorrecta do hardcore, alimentada pela homofobia e o machismo dos jovens suburbanos.

    .

    “Half Japanese – The band that would be king” de Jeff Feuerzeig (1993, 90 minutos)

    .

    Um dos principias traços musicais do punk surge inevitavelmente mencionado em “The Decline”, mas é em “Half Japanese: The Band That Would Be King” (1993), de Jeff Feuerzeig que se autonomiza como assunto central. Falamos de falta de virtuosismo, habilidade ou treino musical. Ou seja da liberdade oferecida pelo punk enquanto estilo de vida: todos podemos ser músicos. Os irmãos Jad e David Fair tomaram o ensinamento à letra e com a ajuda de vários cúmplices, guitarras distorcidas, algum desafino e muita invenção, erigiram uma obra que se revelaria inspiradora para o rock dos anos 80 e 90. O filme de Jeff Feuerzeig descreve, sobretudo com recurso a testemunhos, a sua história, traçando linhagens e filiações (Velvet Underground, Jonathan Richman o cinema de terror) e recordando momentos cruciais (a gravação de “Charmed Life”).

    Mas é mais do que uma biografia. No seu tom despretensioso e directo fala-nos de um mundo paralelo onde a música de tipos banais – autênticas anti-estrelas – chega à capa da Rolling Stone. Apenas e só apenas por causa do charme primitivo e artesanal das suas canções.

    .

    “Instrument: Fugazi document” de Jem Cohen e Fugazi (1999, filmado em super 8, 16mm e vídeo entre 87-97, 115 minutos)

    .

    “Instrument” (1999), de Jem Cohen tem certas semelhanças com “Half Japanese: The Band that Would Be King”. Como este, faz o retrato de uma banda que sobreviveu ao punk, ao hardcore, ao indie-rock e ao grunge, mas é mais ambicioso e complexo, porventura pelo desafio que o objecto coloca: os Fugazi. Não é de todo um documentário convencional (com a habitual sucessão de depoimentos e imagens de concertos ou videoclips) e não cede à tentação oposta: subtrair das imagens o seu sujeito.

    Conta a história da banda de Washington D.C. recorrendo quase só à música, que narra e liga os diferentes períodos, do nascimento nos finais da década de 1980 à diversidade estilística dos anos 1990. As imagens de arquivo abundam, sempre com uma fluidez recatada para mostrar a interacção entre os músicos no palco, a preparação de um concerto, uma conversa. Quase nenhum tema é ouvido na íntegra.

    “Instrument” é um documento belíssimo que reflecte a ética dos Fugazi e rememora as imagens e as virtudes que contribuíram para mitologia do rock independente dos EUA: a vida na estrada (qual saltimbancos ou peregrinos), a relação difícil, quando não impossível entre a arte e comércio, a relação próxima com os ouvintes, não com os consumidores. Não se pense, todavia, que Cohen e os Fugazi se furtam às aporias dessa história. Pelo contrário, assumem-nas. À porta de um pavilhão no Tennessee, o documentarista interpela quem espera pela abertura das portas. A maioria dos presentes revela conhecer a banda, mas também há quem não goste muito dos Fugazi ou esteja ali apenas porque sim. E numa sequência confusa, a banda, incomodada com a violência, termina o concerto alheia aos gestos obscenos e aos insultos de jovens que podiam ter saído de um filme de Larry Clark. “Remember Altamont”, lê-se numa parede de um dos edifícios devolutos de The Decline of Western Civilization.

    .


    “We Jam Econo  – The Story of the Minutemen” de Tim Irwin (2005, 91 minutos)

    .

    A nota melancólica de “Instrument” reencontra-se em “We Jam Econo – The Story of the Minutemen” (2005), mas por outras razões. Quando o filme dedicado aos Fugazi estreou, a banda de Ian MacKaye e Guy Piccioto ainda gravava e dava concertos. Já o documentário de Tim Irwin constitui uma homenagem, uma elegia ao grupo de San Pedro desaparecido em 1985. Afinal, mais do que qualquer outra banda, os Minutemen representaram o espírito voluntarista e romântico do rock independente. Foram verdadeiros auto-didactas que se apropriaram do punk com a liberdade de crianças grandes, colando-lhe ou justapondo-lhe géneros, ideias e vivências.

    “We Jam Econo” transcende os limites do seu tema. É um documentário sobre a amizade entre dois músicos, o amor desinteressado pela música popular e a crença sincera de que as canções, pelas suas características literária e musicais, criam novos receptores. Ao contrário dos outros filmes, oferece-nos uma topografia – em jeito de road-movie, Mike Watt revisita os lugares dos Minutemen em San Pedro – e confronta-nos com a ausência: a do corpo generoso e leve D. Boon. Mas seria um erro descrevê-lo como uma obra de tom fúnebre ou nostálgico. Embora não falte emoção e saudade, é a presença luminosa de um legado, de uma história que prevalece. À espera de ser continuada outra vez.

    ***

    ***

    PROGRAMAÇÃO CINEMA TERRAÇO AGOSTO 2012

    Quarta, 8 às 22h    “Half Japanese – The band that would be king” de Jeff Feuerzeig

    Quarta, 15 às 22h   “Instrument: Fugazi document” de Jem Cohen e Fugazi

    Quarta, 22 às 22h   “We Jam Econo  – The Story of the Minutemen” de Tim Irwin

    Quarta, 29 às 22h   “The Decline of the Western Civilization” de Penelope Spheeris

    * Os filmes deste ciclo não têm legendas em Português

    ..

    .
    Programação Daniela Ribeiro | Texto José Marmeleira | Apoio técnico Carlos Alves | Acolhimento Joana Almeida | Imagem gráfica Sílvia Prudêncio | Manutenção Maria Emília Pereira

    Entrada: 2€
    Reservas: 21 343 02 05 ou [email protected]